Friday, December 7, 2007

César num bistrozinho metido a besta

Ele estava numa mesinha redonda com toalhinha de fazer charme e uma garota convidada a fazer charme. De onde eu estava, via que ele se inclinava para frente, espichando a mãozinha rechonchuda por cima da mesa na direção da garota. Dava pra ver o sorriso molenga, escorrendo pelo rosto dele. Dava pra ver que ele salpicava palavras doces de tempos em tempos. Não dava para ouvir, dava pra ver. Dava pra ver que não tava funcionando. Dava pra ver a nuca da garota inexpressiva. Isso, faz uns dias. Mas hoje a memória da cena me esculpiu um sorriso gratuito. Foi um desses momentos de poesia involuntária no meio dia. Pensando agora, deve ter sido por isso que não reparei no rosto da garota quando passei por eles. Não foi porque era feia, foi por respeito.

Wednesday, December 5, 2007

De repente

Estava lá: um tempinho livre. Simples assim, sem aviso, motivo ou sentido. Agenda livre, nenhum recado secretária eletrônica, nem spam na caixa de e-mail. Absolutamente nada. Agora, era só respirar fundo, ajeitar-se na cadeira e fazer planos de fazer planos.

Friday, November 30, 2007

Ela

Mal se mudou, mudou tudo. Amassou garrafa de refrigerante, pôs pratos no lugar das vasilhas, panelas no lugar dos pratos, sumiu com as vasilhas. Tirou moedas do vaso, jogou fora papéis de estimação, arranjou lugar pra cachorro e orquídea. Trocou sofá, a disposição dos móveis, os móveis, os copos, arrumou tapetes.
Sozinho, pensei na bagunça que ela deixaria, se um dia fosse embora.

Friday, November 9, 2007

Por

– Por que não?
– Por que pôr tudo a perder?
– Porque quem põe tudo a perder, antes de mais nada, tem tudo.
– A gente tem?
– Por que não?

Saturday, October 27, 2007

Hum

- De tanto pensar na gente.
- Acho que a gente.
- Pensa igual.

Tuesday, October 16, 2007

Abreviações

Os dois compartilhavam a fila de cinema. Faltou ingresso e eles reconheceram-se. Viram que eram amigos, apesar de não serem.
Naturalmente falaram sobre filas, filmes, livros, tartarugas, pedras, sol, Antártida. Falaram até faltar assunto.
D., 17, propôs uma caminhada a fim e afim de criar coragem para ficar parado e calado. Enfim, levou J., 16, para uma rua que esconderia o acanhamento dos dois.
F., 13, tentava decidir se atacaria primeiro o homem ou a mulher. Haviam lhe dito que casais eram o alvo ideal. A mulher proteje o homem, o homem proteje a mulher, ninguém reage. Disso, ele lembrava. Só não lembrava quem deveria abordar primeiro. Gostava de abordar. É mais fácil abordar que atacar. Checou o revólver. Estava armado.
Quando D. viu F. surgir detrás de uma árvore, acertou um chute, que atirou o garoto longe. De longe, o garoto atirou e acertou.
J. caiu primeiro, D. logo depois. F. atravessou a rua correndo e encontrou um ônibus que o transformou em mais uma letra de mais uma reportagem de mais um jornal. Que só conta o fim da história.

Thursday, October 4, 2007

Ensolarado

Nas ruas, a poluição purpurinava alegremente em compridos feiches de luz e trânsito. Tudo passava como um rio. Posso jurar que duas ou três pessoas me davam passagem. Tenho uma vaga impressão de que sorriam. Talvez seja exagero.
Só sei que as buzinas, o trabalho, a diferença social, a falta de tempo e o amor que todo tempo faz falta/ Sei que, de todas as minhas dívidas, acordei alienado.

Wednesday, September 19, 2007

Ontem

Morreu um homem que eu não conhecia. Na verdade, não morreu ontem; fiquei sabendo ontem. Para mim, foi ontem.
Vendia bonecos de retalho nas madrugadas, nos bares. Sempre me arrancava uns sorrisos, menos freqüentemente uns trocados.
Certa vez, sabendo do meu aniversário, perguntou se eu não queria encomendar uma caricatura. “Não fica igual”, avisou. Eu ri e deixei por isso mesmo. Perdi para sempre a oportunidade de ser eternizado na sua galeria de pano, ao lado de Zé Celso e da simpática cobrinha Tuli-Tuli.
Os botecos perderam mais um personagem. Posso dizer que das pessoas que não conheci, ele era a mais bacana.

Tuesday, September 18, 2007

Despedida de solteiro

– É tudo muito infantil. Coisa de quem teve que se reprimir muito tempo, daí vem para esse tipo de lugar/
– Puteiro.
– Hein?
– Este lugar é um puteiro.
– Ok, ok. Vêm ao puteiro para lembrar algo que se julga estar perdendo. Eu não estou interessado, obrigado.
– Nem de graça?
– É de graça?
– Não.
– Nem de graça.

a semiótica e o rango

Uma vez me disseram que o homem que nasceu cego dorme de olhos abertos. A frase sempre me pareceu um ditado japonês mal traduzido, algo que deveria ser bonito no original.
Ao longo dos anos, machuquei cascas de árvore, cartas de amor e ódio com essas palavras. Pelos meus cálculos, a recitei em voz alta oito vezes, sendo que em pelo menos uma delas eu estava sóbrio, e em outras duas troquei a palavra “cego” por “o homem que nada vê” (que julguei reforçar o aspecto intraduzível da coisa toda).
Ontem de madrugada, abri a porta da geladeira para pegar a última fatia gelada de pizza de calabreza com azeitonas pretas e, bem na hora em que a pequena luz se acendeu, percebi que nada não fazia o menor sentido.

Thursday, September 6, 2007

Poemim

Entre idéia, forma e fim,
a insuficiência de mim.


colaboração de papai

Monday, September 3, 2007

2/09/07

Obrigado.
De quê?
De tudo, né?
É? Não, é nada.
Tem certeza?
De nada.

Friday, August 31, 2007

Tenho certeza

De que a alma da criança fica pro lado de fora. Contorna o corpo, elástica, flexível. Enche elevador, não mora em apartamento. Alma de criança é espaçosa. A criança cresce pra caber a alma dentro. Vez em quando alguma coisa acontece e acontece de ficar pra fora. Raramente, não é toda hora. Mas acontece. Aí, entra você. Que é uma coisa assim, que só vendo. Que não cabe na imaginação de ninguém. Nem de criança.

Monday, August 13, 2007

Esmola

Ele manca para mim. Até mim. Estica o sorriso e a mão espalmada.
Tiro uma moeda do bolso, entrego e agradeço:
– Obrigado.
– Por quê?
– Fiz mais bem pra mim que pra você.
Ele sorri, ele não entende, ele manca.

Thursday, August 2, 2007

Ela pergunta

– Você só escreve sobre coisas tristes?
– Escrevo sobre mim.
– E quando você está feliz?
– Boto os verbos no passado.

No fundo

A primeira pancada levanta um taco do chão da sala, ele sente-se bem. Poeira e purpurina, lascas de madeira e confetes acompanham o batuque da pá. O cimento esfarela docemente. A terra seca é furada, uma, duas, dúzias de vezes. Os braços queimam, o suor escorre-lhe pelas costas, pelo rosto, os olhos ardem por um novo motivo.
Ele sorri, exaurido. Sente o corpo pesado, relaxado, pulsante. Sente o corpo. O buraco é estreito e tem pouco mais de quinze centímetros de profundidade. Ele só caberia ali aos pedaços.
Tudo bem, será fácil de tapar quando chegar a hora.

Friday, July 6, 2007

Ponto

- Uma pessoa que não deseja os próprios ossos, que não faz amor com o impossível, que não conta as próprias pintas, que não gosta das manhãs. Uma pessoa que não cheira os girassóis de Montale. Que não gosta de poesia…
- Diga o que quiser, este conto acaba aqui.

Tuesday, July 3, 2007

Adolescência

-Você gosta?
-Não gosto.
-De mim?
-De mim.

Thursday, June 28, 2007

Entre

Livros, corpos, suores e pensamentos difusos, ela tateia amanhã.
Como quem procura os próprios olhos.

Monday, June 18, 2007

A nave

Finalmente chega à metrópole terráquea.
Nenhum lugar para estacionar.

Bilhete

Fui tirar satisfação com Deus.

Tuesday, May 29, 2007

Em claro

Pasta de dente na escova. Abrir torneira, molhar, fechar torneira. Esfregar. Frente, trás, direita, esquerda. Fio dental. 32 dentes. Abrir torneira, bochechar, cuspir e fechar. Boca e torneira. Tirar calça, chutar tênis, arrancar camisa. Calça de moletom, camiseta de vereador. Um pijama. Sentar na cama, calçar meia. Enfiar-se debaixo das cobertas. Apagar a luz. Cobrir pés, cabeça. Um submarino. Lembrar de todos os passos, pensar que não falta nada. Fechar os olhos.
Desta vez, ele pensa, talvez eu durma.

Friday, May 25, 2007

Encontro

Foi no exato momento em que cospia pasta de dente na pia de um hotel barato em Amsterdã, que ele notou que finalmente tinha encontrado a mulher perfeita. Deu dois passos para trás. Fechou os olhos, acariciou os seios, as pernas, sentiu as nádegas torneadas na ponta dos dedos e sorriu um sorriso perfeito.
Abriu os olhos e se namorou no pequeno espelho.
O cirurgião havia lhe dito que ele levaria um tempo para se habituar ao novo corpo. Errou. Pela primeira vez, ele estava em casa.

Wednesday, May 23, 2007

Um pedido

Leia mais livros. Compre mais livros e leia. Sobretudo, compre. Amarelos, azuis, vermelhos, compre pelas cores, pelo metro. Para combinar com o sofá, com a televisão, com todas as fantasias. Para dar de presente. Encher a sala. Apoiar aquela cadeira bamba. Nem o intelectual mais babaca condenará você.
Tenha caridade. A literatura tem fome.

Tuesday, May 15, 2007

Mutarelli é bacana

-O que você tem contra quadrinhos?
-Pra mim, é um acidente entre literatura e cinema que não deixou sobreviventes.
-Mas precede o cinema.
-O que isso tem a ver?
-Nada. E Mauz?
-Hã?
-Isso:
-Parece o albúm de figurinhas da lista de Schindler.
-Ok. De Mutarelli todo mundo gosta.
-O senso comum não tem bom senso.
-Vai dizer que você não gostou do Cheiro do Ralo?
-Versão cinema ou literatura?
-Impossível discutir com você.
-Pois é, eu nunca me arrisco.
-Você é um personagem.
-De quem?
-Provavelmente do Mutarelli.
-Quando faz literatura?
-Pode ser.
-Bacana.

Tuesday, May 1, 2007

O dia em que o motorista perdeu o emprego

- Madame, eu te daria tudo se tivesse.

Tuesday, April 17, 2007

Interlúdio anedótico III

Top 10 de coisas que eu odeio
1. Fazer listas

Wednesday, April 11, 2007

O reflexo da vitrine

É um homem bonito.
E eu tenho doze prestações para provar que aquele homem sou eu.

Monday, April 9, 2007

Road Trip

A paisagem estica-se. O sol escorre lentamente. Partículas de poeira se excitam, purpurinantes. Cachorros correm silenciados. Poças de lama grafitam os pára-choques. O ar condicionado deixa o mundo na temperatura perfeita.

Friday, March 23, 2007

Primeiro encontro

E se eu só perceber que já ouvi tudo isso antes quando for tarde demais. Quando ele estiver na metade. Ou quase lá. E se for simplesmente ruim. E se não tiver graça nenhuma. Ele é banqueiro, sério. Não parece levar jeito para coisa. E eu sou sincera demais. E se eu não conseguir nem forjar um sorriso decente depois. Melhor antes.

Ela termina o gole e diz:
- Eu não gosto de piadas.

Thursday, March 15, 2007

Sala de espera



-Não quer mesmo um café?
-Café espanta o sonho.

Sunday, March 11, 2007

.

Se o biscoito chinês estiver vazio, escrevo minha própria sorte.

Wednesday, February 28, 2007

Sunday, February 25, 2007

Aprendera a viver

Quando o sucesso finalmente chegou, não ficou nem mais nem menos feliz.

Monday, February 5, 2007

De passagem

Saco plástico de farmácia, contendo nota fiscal para uma escova de dentes Colgate Pro. Moedas de 5 centavos. Embalagem de Clorets pela metade. Fósforo de restaurante. Canhotos de gastos em bares. Lanchonetes. Deixados para trás. Podiam significar alguma coisa. Contar histórias, revelar segredos, pecados e prazeres. Não. São apenas coisas que pessoas esquecem. Ruas, nomes, números, postes. O sol. A paisagem. Uma camareira de hotel. A cidade. Coisas de que pessoas apressadas não fazem questão de lembrar. Não têm importância. Não dão um conto.

Sunday, January 28, 2007

O canalha

Desde que comprou um apartamento de frente ao mar, virou as costas para nós.

Friday, January 26, 2007

Todas as idéias são boas. Geniais. Fantásticas. O que estraga tudo são as pessoas. As que acreditam nelas. Esse tipo de gente que atormenta a idéia até virar. Aí, a idéia vira. Na maioria dos casos, lixo estéril. Em outros, só um projeto fracassado. Muito, muito raramente algo que conserva uma pequena fagulha criativa, uma mínima sombra de idéia. Infelizmente, idéias inocentes são sacrificadas no processo. E isso é triste. Você já viu uma idéia morrer? Não é uma cena bonita, definitivamente. Ela se agarra nos cantos do cérebro, arranha o ego, arranca pedaços da auto-estima, esperneia por toda caixa craniana e agoniza ali, bem diante dos olhos. Muita gente fica traumatizada e nunca mais acredita em idéias. Outros se acostumam. Com tempo, param de sentir qualquer tipo de piedade. Sacrificam idéias às centenas, aos milhares. Concebem e cutucam as coitadas até se satisfazerem com a costela de uma ou outra. Essa gente se alimenta disso. Disso, e das poucas idéias que se adaptam fora do conforto de um pensamento. Essas estranhas criaturas que sobrevivem ao mundo que não é ideal. Mas existe.

Monday, January 22, 2007

Bandeira a 2

Seus dentes
Branqueados
Abrem caminho
Oferecem carona
Ao meu sorriso
Taxear
Sem mais ser
Passageiro.

Friday, January 19, 2007

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O dia me nasce pelos ouvidos. Vejo o som, fluido e sépia, invadir o quarto. A beleza da época em que se ouvia rádio com olhos de ver TV. Deixo a música arrancar minhas cobertas, sigo-a com o corpo. Paro um instante em frente à porta fechada. Hesito.
Abro-a num só golpe, como um figurão entrando num cabaré.
Tudo emudece. Uma senhora varre a cozinha. Reconheço os traços de uma bela mulher. Minha avó sorri. Sorrio de volta. Ela se afasta. A vassoura de piaçava arranha os tacos do corredor. Ouço um sussurro melódico, provavelmente imaginário.

Wednesday, January 17, 2007

Interlúdio anedótico

-Sabe o que o sábio pensou um segundo antes de morrer?
-?
-Nada.

Thursday, January 11, 2007

De volta pra casa

O cobrador da lotação enxuga nos bolsos as gotas do meu fim de expediente.

Wednesday, January 10, 2007

Brainstorming

- Pensei que o cara podia ficar sem tempo, sabe? A cada dia, ele tem menos e menos tempo… Até que não dá tempo nem de acordar.
- Ele morre?
- Simplesmente não acorda.
- Hum... Acho que não tem espaço pra isso.
- No blog?
- Na vida.

Tuesday, January 9, 2007

Na cruz

Ele se pregou.

...

- Deus criou os homens para que vivessem segundo os mandamentos.
- E?
- De boas intenções, o inferno está cheio.

Monday, January 8, 2007

Um cenário paulistano

A chuva rega as ruas, carros brotam e ninguém transita.

Hoje

Vivo do que dei para ela. Das coisas que ela pendura, como quem devolve o amor em parcelas.